O Canto do Tritão
"O mar serenou quando ela pisou na areia"
Saí correndo do calçadão pra praia, pisei na areia pulando garrafas e flores, me desvencilhando da multidão vestida de branco e de pés nos chão - quase em sua totalidade. Gente rica se fingindo de pobre. E simples. Talvez sejam. Simples, digo.
Corri porque eu PRECISAVA ficar perto da caixa de som, perto do DJ, afinal, fora todos os 9 fora[s], era pra este momento que eu estava ali. E eu tinha acabado de chegar. Sorte. Reparei que a caixa fincada na areia da praia esse ano era caixa de som da JBL. Menos simplicidade. Não reclamei, o som estava perfeito.
"Quem samba na beira do mar é sereia"
Fui o máximo que pude, fiquei com a caixa de som bem às minhas costas, mas uma sacola do Zona Sul, acompanhada dos seus donos, um loiro, um gigante samurai de MMA e uma garota que lembrava Elis Regina na sua fase cabelos-bem-curtos, me impediam de ir em qualquer direção além. Espremido, mas dançável. Eu queria a caixa.
"O pescador não tem medo"
Já passava de meia-noite, eu já tinha visto os fogos em Copacabana, já tinha deixado os amigos seguros no apartamento, e já tinha ido rumo às areias de Ipanema. Sozinho. Pra essa tal festa que considero a melhor do ano. Sinceramente espero o ano inteiro por ela. Isso quer dizer que meus olhos já estavam brilhando e eu já tinha tomado todo o espumante possível pra minha idade. Do rosé ao não-rosé.
Não demorou muito pra uma garota cair na minha frente, tropeçando na tal sacola.
Eu e o Samurai, de pronto começamos a levantá-la. O Samurai tinha um dos sorrisos mais largos, abertos, e humanos que eu já tinha visto em minha vida. Ele olhou nos meus olhos enquanto levantávamos a garota e imediatamente eu vi toda a alma dele.
Logo veio correndo, do meio da multidão, o namorado dela, afobado, a pegou dos meus braços e agradeceu.
_ Ela queria muito chegar perto dele. Tentei correr atrás dela, mas ela foi mais rápida.
"É segredo se volta, ou se fica no fundo do mar"
[Passei o resto da noite, até bem depois do sol se levantar, e começar a ferver minha camisa polo rosa usada exclusivamente neste réveillon - um presságio de uma polêmica que viria dias depois sobre o uso de "Rosa e Azul" (aliás, um dos meus quadros prediletos no mundo, um Renoir que fica no MASP) - a levantar mulheres. Menos uma senhora, que caiu de costas em cima da mesa do DJ. Não tive tempo suficiente para impedir.
Tudo bem com ela. Bem magrinha, assim que a música voltou pelas mãos do DJ, ela também voltou a dançar. Aproveitou meu braço estendido que a levantava, e começou a me rodopiar e a se rodopiar como num balé. Esse balé na areia fofa gerou várias quase-quedas. Minhas e dela.]
Rearrumaram a sacola. Enquanto eu tentava rearrumar o que o namorado da primeira, de muitas vítimas daquela sacola no breu da multidão, tinha me dito, segui dançando a tal faixa musical que me faz todo ano caminhar até a festa.
Aquela primeira queda não era pela Garota Com Cabelo de Elis. Só podia ser pelo Samurai, ele era um obelisco. Pensando nisso, observava ele, Ele bebia uma garrafa de espumante rosé pelo bico, ela tinha chegado da multidão, tinha acabado de ser aberta e entregue nas mãos dele. Ele sorriu pra mim e me passou a garrafa.
Não sei se já disse que tenho uma queda por espumante rosé, ainda mais no Verão. Refresca. Me resta dizer aqui e agora, que sem qualquer dúvida passar pela minha cabeça, bebi pelo bico aquela garrafa que tinha acabado de sair dos lábios do Samurai, ele era um totem. "Pra matar a sede".
Enquanto eu repassava a garrafa, alguém chegou por trás de mim e me cutucou o ombro. Um cara. No escuro, não consegui ver seu rosto num primeiro momento.
_ Você acha que tem problema eu chegar perto e ir falar com ele?
Quê??? Meu Samurai??? Nem pensar! Olhei pra ele ali sorrindo e dançando.
_ Olha, ele tá aqui pra ser alguém como todo mundo, e curtir o réveillon. Não creio que queira ser incomodado...
_ É mesmo. Acho que você tem razão. Sei lá, eu só queria agradecer ele por tudo. Mas você deve ter razão.
Sorri compreensivo. E o cara foi embora sorrindo.
Um cara, muito parecido com um conhecido meu da época de faculdade, hoje no Canadá, chegou com várias latas de cerveja. Ofereceu para os três em volta da sacola e para mim. Todos negaram. Eu não. "Pra matar a sede".
Enquanto as latas de cerveja eram oferecidas - mais e mais vieram - o sol começando a aparecer por trás das pedras do Arpoador, celulares ao alto tentando captar aquele começo de luz, o horizonte se colorindo - e eu sorria sabendo que aquele sol ainda viria fritar a festa, e ficar ainda mais impressionante - tive a oportunidade de olhar melhor um por um dos três. Iluminados um pouco pelo sol chegando, um pouco pelas telas de seus celulares. A Garota com Cabelo de Elis. O Samurai, sempre sorrindo. O loiro. Finalmente reconheci o loiro. O Cantor. Era por ele que as pessoas continuavam caindo sobre a sacola. Que as pessoas continuavam vindo falar comigo e minha cara de acessível, causada pela boa música e por estar na minha festa preferida de todo o ano, e que faziam as bebidas continuarem a ser oferecidas a todo tempo à "nossa" roda.
"Nossa roda", cheguei ali pela caixa de som. Continuei pelo Samurai. Continuei pela caixa de som, e porque estava me sentindo um bombeiro de uma equipe de resgate. É uma sensação boa.
Foi engraçado reconhecer O Cantor. Eu já tinha postado várias fotos dele ao longo dos anos no meu Tumblr. E agora ele estava ali na minha frente, dançando na pequena roda, e eu nem o tinha reparado. Graças ao sorriso-revela-alma do Samurai.
Segui a noite dançando cada música inacreditável que vinha, bebendo, eventualmente comentando uma coisa ou outra no ouvido da Garota Com Cabelo de Elis, comentando algo no ouvido e sorrindo de volta pro sorriso do Samurai que também, eventualmente, era pra mim - ou pra minha empolgação com as músicas, sabe-se lá.
Em momento algum falei com O Cantor. Agora era tarde demais, eu o havia reconhecido.
Eles não resistiram muito tempo à chegada régia do sol, ou talvez tivesse sido a maratona típica do 31 de dezembro e 1º de janeiro. Pegaram a sacola, começaram a ir embora. Parei a Garota Com Cabelo de Elis pelo braço, que se afastava, e disse "Não, olha, esse início de batida, vai começar ABBA!" Tombou a cabeça pra mim, sorriu.
Não adiantou.
O Oriental - aliás, se mostrou cada vez mais uma pessoa divertidíssima - e mais alguns amigos dele ficaram. Foram inclusive bem pra frente do sol. Sorrimos algumas vezes uns pros outros em comunhão. Um mendigo tocava um violão sem cordas e acompanhava cantando uma música em inglês vinda dos anos 70 que o DJ colocou. Fizemos um duo.
Órfão de roda, e vítima do sol que fazia ferver minha tal camisa Polo rosa, grossa, que tinha vindo de lugares mais frios, fui pra sombra da barraca do DJ.
Agora o som não só era JBL, era estéreo.
Cantamos ABBA, cantamos Cazuza, cantamos Bee Gees, cantamos Rita Lee, que foi o ápice do coro uníssono na multidão, cantamos Moloko.
Moloko cantei com uma senhora, que percebeu logo que eu também sabia toda a letra, e que cantou comigo do início ao fim, dançando, apontando pra mim. Fizemos um duo.
Homens começaram a aparecer. Homens que só se vê em Ipanema. Olhavam pra mim e pra minha empolgação. Vinham falar comigo. Um deles era especial, esqueci todos os outros. Com a camisa repousando sobre um dos ombros, me elogiou, falou várias coisas que não entendi.
Dancei com muitas senhoras. Que juntas com muitos senhores, eram a nata da sombra proporcionada pela barraca do DJ.
Um garoto ao meu lado usava um short bem curto, Lets Get Physical, 100% transparente. Por baixo, claramente se via um fio dental rosa-choque. Alguns homens, e algumas mulheres, notavam o que não havia como não notar, vinham a ele, para elogiá-lo.
De trás do espaço do DJ, veio um senhor que preparava churrasco ali mesmo, estendeu uma bandeja de carne por cima das pick-ups pra mim e disse "Pega, sangrando do jeito que sei que você gosta". Peguei um punhado daquela carne sangrando, o que coube na mão, e taquei na boca. "Pra matar a fome".
O cara do violão sem cordas pegou uma garrafa de Aperol que estava sobre a mesa brilhando ao sol, no meio de muitas bolsas, uma lata de cerveja vazia e amassada que achou em algum lugar, e fez sua festa, os olhos brilhavam.
Um outro DJ assumiu o som, e olhava pra mim a cada música que colocava, esperando a reação. O que posso fazer? No Dia de Todos os Santos, a última coisa que vou me impor é tolher minha empolgação.
O sol já alto, quente refletido na areia, deixava bem claro que estávamos agora em Janeiro.
O segundo DJ parou o som, pegou o microfone pra informar que um amigo de todos eles ali, de anos e anos incontáveis, que também estava na festa com a gente, tinha tido um infarto e morrido. Disse que alguém como ele não poderia ter morrido de outra maneira e em outro lugar. O DJ tocou mais uma música e encerrou a festa.
Um trio de musculosos que tinha acabado de chegar reclamou por cima das pick-ups, tentando ser ouvido pelo DJ que já enrolava os cabos, que a festa acabou assim que botaram o pé ali. Puxei o mais ameno deles e expliquei o que havia acontecido. Apesar de que era pra ele também ter ouvido o que o microfone ecoou.
Dei a volta na barraca do DJ pra ir embora. Dei de cara com O Cara Especial, que ainda estava ali, se apoiando na lateral da estrutura. Ele chorava.
Disse pra mim que estava emocionado com o que tinha acontecido e com as coisas que tinham sido ditas no microfone.
Dei um abraço nele. Acho que tentei consolar, e transmitir humanidade.
Eu, que tinha chegado ali sozinho, comecei a caminhar de volta pro apartamento, sozinho.
Andando pelas ruas já calmas mas com todos os resquícios do Réveillon, alguns poucos garis tentando dar um jeito naquilo, fiz todo o percurso de volta à Copacabana, até abrir a porta da cozinha e entrar, exausto, e segurando com muita dificuldade um choro doído, pensando no valor da Amizade.
Escrito por Bjorn Nattevagten
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