Crônica de Domingo: Ex/ílio

_ Respira... - Uma voz estranha.
_ Respira! - Uma segunda voz estranha, também desconhecida. Bem, bem menos paciente.
Pelo que eu entendi, por algum motivo eu tava prendendo a respiração.
_ Você não tem nenhum motivo pra parar de respirar. Respira. - Voltou a primeira voz, agora já no mesmo tom da segunda.
Mas a minha cabeça estava em outro lugar. Estado de semiconsciência.
Sei lá. Porém eu não tinha chegado no estado que a gente sempre ouve as outras pessoas falando, tipo, "nessa hora toda a minha vida passou como um filme na minha cabeça".




Eu tinha recebido uma proposta de emprego no Rio de Janeiro. Um "Emprego dos Sonhos". Imediatamente ficou claro pra mim que era uma oportunidade única na vida, e, naquela altura, já não tão jovem, provavelmente a última. Era agora ou nunca. Um agora ou nunca que veio depois de já ter chegado à certeza há algum tempo que na minha vida seria "nunca". Não podia haver esitação, não podia haver atraso, não podia haver vou pensar. Eu poderia ter um foco na vida. Uma nova vida, direita, pensei. Uma vida que era esperada há muito tempo de mim, acho, uma vida com Previsão. Não podia me resguardar mais uma vez no meu "medo de não dar certo. E depois, o que eu iria dizer?" A janela se abriu. Era ir. E pronto.

Agora era deixar qualquer raiz pra trás.

Fui. Fiquei cinco anos no Rio sem sequer pisar de volta em Belo Horizonte. Apesar dos pedidos, das oportunidades, dos feriados, das datas, das comemorações. Numa visão obtusa de que isso era pular de cabeça na minha nova vida. A vida direita. Que finalmente veio. Olhar para trás poderia atrapalhar tudo.
Há quem diga que eu finalmente cortei o cordão umbilical. Outros disseram que cortei foram laços.

Minha vida não era nada "direita" no Rio de Janeiro. Continuei a mesma pessoa. A mesma. Agora só tinha um emprego de verdade. Ele me trouxe um trilho. Não nego. Mas todo fim de tarde eu podia sair dele, descarrilar talvez. Todo fim de tarde eu saía pelas portas imediatamente afrouxando a minha gravata, algumas vezes ainda com o sol do litoral castigando, e continuando de onde eu tinha parado.
Seja como for, na manhã seguinte religiosamente eu estava lá de volta na minha mesa. Não é assim que a vida é?



Cinco anos ininterruptos e de repente eu me vi de volta em Belo Horizonte. Um telefonema e eu estava de volta. Vários telefonemas e eu estava cercado por velhos conhecidos. Malditos celulares. Vamos pro Bar! - alguém disse. Ou fui eu quem disse? 

Era fim de expediente para todos, não demandou muito esforço. Abrimos e logo lotamos o bar.
Existia... uma alegria de eu ter voltado, muita gente falando ao mesmo tempo, muitos assuntos cruzados, conhecidos meus que agora se conheciam, muitos assuntos. Era impossível pra mim responder, entender ou mesmo participar. Muitas vezes, logo que algo era falado pra mim, alguém lá do outro lado respondia na frente. A máquina entre eles, diferente da minha, estava azeitada. Com a falta de necessidade de eu participar, me concentrei nas cervejas do bar. Nestes anos, Belo Horizonte tinha ganhado muitas cervejas próprias. Locais, não atravessavam as montanhas, no meio de toda aquela conversa, eu não deixava nenhuma passar. "Onde você achou isso?", "Sabe que nunca provei dessa?" E voltavam pros assuntos. Eu nem interrompia a cerveja. Ia até o fim de cada garrafa.

Foram horas e mais horas. Mais e mais gente chegando. Com elas, chegavam as mesmas perguntas se repetindo. Mas como eu tinha as pessoas que respondiam por mim, eu bebia. Bebia e sugava um cigarro. E outro e outro. Notei que eu acender um cigarro - não a fumaça do cigarro em si - o ato de eu acender um cigarro incomodava as pessoas que estavam comigo.
Eu nunca bebia e fumava ao mesmo tempo, não é um costume meu. Não gosto da sensação de boca molhada no papel que fica. Mas aquele dia, aquela minha volta à Belo Horizonte, pedia. A cerveja e o cigarro eram minha eucaristia, meu pão, meu vinho. Meu pão e vinho. Eu me alimentava dos dois como um faminto.
Não sei de onde tava vindo toda aquela fome. Sabia, claro. Mas a origem da fome importa? E como a gente a erradica importa? Bem, era cigarro e cerveja neste caso.
De tempos em tempos vinha um segurança e mandava eu apagar o cigarro. Aquilo me dava raiva. Especificamente ele interromper as conversas, digo. Assim as atenções se voltavam novamente para mim.
Ele se ia e eu imediatamente acendia outro. Novamente os mesmos olhares incomodados dos que estavam comigo. Agora os olhares vinham acompanhado de um "Você tá bebendo demais". Logo as conversas voltavam e eu bebia mais e até com mais pressa.
Logo meu estoque de cigarro acabou, seja como for, e as pessoas desconhecidas que passavam, pra quem eu pedia um cigarro me ignoravam. Eu tinha me molhado um pouco de cerveja, devia ser isso.
As pessoas que estavam ali "por mim" viam esses momentos, constrangidas, os pedidos para eu parar de beber aumentavam. Alguém chegou a sugerir chamar um taxi pra mim. Aquilo me deu raiva. Comecei uma briga a partir da primeira frase do primeiro assunto irrelevante que veio em seguida.

Todos os assuntos se cessaram num silêncio espectador.

Continuei discutindo. E quem tentou oferecer um adendo se viu no meio da briga. Desenterrei coisas. Como ousavam pedir para eu parar de beber? Quantos ali já se viram na minha posição? Quantos ali estavam sentindo o que eu estava sentindo? Inimigos!
Olhares de pena enquanto eu falava. Foi tudo saindo de uma vez e eu já estava sem voz, sem ar, e sem mais nada por dentro, ou porque continuar.
_ Vou pra algum lugar em que ninguém me encha o SACO se estou bebendo ou não!





Cheguei no outro bar muito rápido.
Parecia que eu tinha saído de um lugar por uma porta que já dava no outro, apesar da distância que era considerável.
Fui direto ao balcão e pedi uma Heineken. Olhei rapidamente em volta e não tinha ninguém conhecido.
Achei bom, eu tinha muito em que pensar.
E aquele tanto de gente ao meu redor, antes, no outro bar, falando, perguntando, me regrando, não deixava. Aquilo me deu raiva.
No fim das contas, deu tempo de eu beber toda a minha garrafa, mas não deu tempo de pensar: Virado contra o balcão e sentindo o gelado da cerveja descer, eu fui observando as pessoas do bar. Era um bar bem mais "requintado", e definitivamente mais caro do que o anterior. Isso foi pra diminuir as chances de esbarrar em mais alguém pra me encher o saco. Nisso, nem muito longe de mim, pra ser sincero, mas num canto mais escuro, reconheci um cara do meu passado, o Bilíngue.
Ao longo dos anos, antes da minha mudança pro Rio, a gente tinha se beijado algumas vezes. O primeiro beijo foi quase um experimento meu de ver como seria um beijo sentindo barba na barba - barbas eram ainda extremamente raras naquela época, ambos tínhamos - só que o experimento acabou se prolongando por toda a noite. E eventualmente por mais e mais noites. O que é estranho de se pensar, dado os papéis que ambos tínhamos desempenhados no nosso grupo nas décadas até ali, até o primeiro dos beijos. Tanto que nunca falei pra ninguém que eu e ele cruzamos a linha e passamos pra outro nível.

Ele estava de costas pra mim, mas aquele cabelo de quem acabou de acordar e estava pouco se lixando era inconfundível. O Bilíngue naquele estava naquele chiaroscuro - palavra que ele certamente usaria inserida de alguma forma em alguma conversa, bem desnecessariamente, e (por isso) me daria náuseas - conversando com um outro homem bem, bem mais velho, este vestido como quem acabara de largar o trabalho numa loja de sapatos, inofensivo, mas era só olhar para o rosto dele que qualquer inocência se dissipava da figura. Olhava pro Bilíngue como quem estava pronto para devorá-lo. Certamente o Bilíngue estava com o mesmo olhar. Os corpos cada vez mais próximos dos dois também diziam isso. Era a conhecida "Dança".
Foi o mais velho que me viu e me apontou para o Bilíngue. Chegou perto do ouvido dele. Consegui ler nos seus lábios algo como "Aquele cara no balcão está olhando pra gente. Acho que ele te conhece". "O de barba".
Ele se virou finalmente procurando por mim - acertei, era ele mesmo - e olhou pra minha barba, sorriu. Não resisti ao ver o rosto dele, lembrei do beijo, o chamei.

Conversou comigo com certa pressa, fez exatamente as mesmas perguntas irritantes das pessoas no outro bar, se eu tinha voltado pra BH, como estava morar no Rio, como estava o trabalho que tinha me levado pra lá, sobre as pessoas no Rio. Eu ia respondendo negativamente para cada pergunta. Enquanto isso, ia se aproximando cada vez mais de mim. Olhava pra minha barba, me olhava fundo nos olhos, olhava novamente pra minha barba. Ou mesmo tempo, olhava a tempo todo para trás, pro cara mais velho, controlando se ele ainda estava no mesmo lugar, se ele ainda estava disponível. O tempo todo, como quem tem  urgência. Aquilo me irritou. Virei pro balcão e pedi outra garrafa de cerveja. Quando me virei novamente pra ele, ele estava ainda mais perto, mesmo que não parecesse possível. Perto a ponto de eu sentir seu hálito de cerveja quase molhando meu rosto. Não era Heineken.
Depois de tantas negativas minhas, enquanto eu também observava de perto sua barba e sua boca, me perguntou finalmente "Qual era o [meu] problema, então? Parece que você não gosta de nada de lá". Dei uma grande pausa antes de responder qualquer coisa. Observei, por cima dele, o cara mais velho. Tive a impressão de que ele aprovava o Bilíngue ter ido conversar comigo, a troca, depois me lançou o mesmo olhar devorador, assim que terminou de me olhar dos pés à cabeça.
Tomei acho que mais da metade da nova garrafa, de uma vez. Gelada.
Esperando minha resposta, o Bilíngue olhou novamente pra trás, o cara mais velho já não estava mais a vista, parado no canto aguardando.
Não era verdade que eu não gostava da minha vida no Rio. Segui no meu tom: "Não, não tô gostando de morar lá, não. Não gosto das pessoas de lá, são bem diferentes das daqui. Não gosto do meu trabalho, mas vou todo dia".
No mesmo tom de antes? Não, não, ríspido. Eu estava irritado.
Silêncio.
Ele disse qualquer coisa no sentido de que eu iria me adaptar com o tempo, sorriu, e falou que ia voltar para onde estava.
Não voltou pra lá, claro. Saiu pelo meio das pessoas procurando alguém.

Segui meu resto de madrugada no mesmo lugar, no balcão. Segui pedindo minhas cervejas, agora exigindo pro cara do bar que fossem geladas, como aquela que tomei. Pedindo pra trocar quando não estavam. Segui não conseguindo pensar no que eu tinha que pensar.

Acho que já não era mais noite. O tempo certamente passou e já não havia quase ninguém no bar além dos funcionários, já mais despojados. Fui caminhando por entre as mesas, finalmente saindo do meu posto no balcão.
Reencontrei o Bilíngue. Num canto e sozinho. Hmmmm, interessante... Passei perto dele.

_ E aí? E como-- Enfim, o Bilíngue começou a puxar qualquer assunto, me parando. Vou poupar o que ele falou, até mesmo porque não me lembro. Eu fui respondendo.

(Nesta altura, era a terceira, quarta, quinta "conversa" nossa ali, não sei, durante uma delas, o cara mais velho passou por nós, o braço envolvendo o pescoço de um garoto. Ele e o Bilíngue se olharam, sorriram um pro outro, e foi como se aquela troca leve de sorrisos tivesse marcando um novo encontro, uma nova oportunidade que viria sabe-se lá quando. Isso me incomodou.
Não era um bar grande, o Bilíngue havia passado algumas vezes por mim, dito qualquer coisa, com aquele sorriso dele. Eu ficava olhando pra barba dele, pra boca. Não chegava a ouvir as frases soltas que ele disparava, mas também era só isso, não havia mais amenidades pra conversar.)

Já desta vez, ali enquanto ele falava, fiquei lembrando das outras vezes em que a gente tinha se beijado, enquanto ele falava. Falava. Falava.
E quanto mais ele falava, mais expansivo ele ficava, e quanto mais expansivo ele ficava, mais ele gesticulava com os braços. Mais. Com aqueles braços gesticulando e enfatizando, para todos os lados, ele era mais que bilíngue agora. Aquilo me deu raiva.
_ Você não consegue não falar em duas línguas, né. O Português não te basta. - Eu o interrompi, de súbito.
_ Mas eu não falei nenhuma palavra que não fosse em Português. - Ele estranhou meu comentário, mas sorriu.
_ Mas eu sei que você é assim.
_ Eu...
_ Eu SEI que você é assim.
Ele pensou um pouco. Tentou se justificar, contrariado, mas tentou:
_ Bom, meu pai foi criado morando na casa do avô dele, criado principalmente por esse avô italiano dele. Em italiano - e riu - e pela mãe, filha desse avô, mas já brasileira, então em Português. Acho que meu pai passou um pouco disso pra mim, a família toda acabou com essa dupla influência, é natural. Mas... - e parou um pouco pra pensar - sim, eu não usei nenhuma palavra que não fosse em Português agora. Eu não uso o Italiano a não ser que não tenha uma palavra que também sirva em Português. Seria ignorância usar, falta de vocabulário. E obviamente meu vocabulário em Português é bem melho--
_ É. É. É. Mas você faz isso, sim. Não é a primeira vez.
Ele sorriu assutado. Ou docemente, não sei... Disse algo que não consegui ouvir. E saiu.
Ele que fosse pro inferno.

Eu entrei na fila pra pagar minha conta. Uma fila que nunca andava porque aqui em Belo Horizonte cada pessoa tem a necessidade de conversar com o Caixa enquanto paga. Deu tempo de eu tomar uma garrafa inteira da minha cerveja.
Quando finalmente chegou minha vez, de frente pro Caixa e disposto a não conversar nada, no máximo dizer um bom dia, pagar minha conta, e mostrar como se faz, pensei melhor. Disse apenas "não", ou algo assim, e voltei pro bar pra pegar uma última garrafa de cerveja.
Àquela hora, o balcão do bar estava vazio - o Caixa que era pra onde todo mundo tinha ido, estava disputado - e me vendo me aproximar o cara do bar já foi ao freezer pegar uma Heineken pra mim, eu ainda no meio do caminho. Quando cheguei no balcão, já me entregou a garrafa, marcou na minha ficha, e não disse nada. Gostei. "O Bar precisa conversar com o Caixa", pensei.
A partir daí foi tudo muito rápido.
Voltei pro caixa, sem fila como por um milagre, paguei, mantive minha promessa de não ficar de conversa, saí e fiquei debaixo da marquise bebendo minha última garrafa. Gelada. As lojas debaixo da mesma marquise já todas abertas.
Tive a sensação de que minhas pernas não estavam confortáveis de pé, ou algo assim, não sei. Sei que rápido senti meu ílio no chão, tudo escuro. Olhos fechados.
Por que fechei os olhos? Não sei dizer. Mas minha cabeça estava em outro lugar. Não tava passando nela um "filme" de todos os momentos-chave, pessoas, afetos da minha vida. Não. Ela estava... numa sala de espera. (Só eu). Um limbo.

_ Respira... - Uma voz estranha.
_ Respira! - Uma segunda voz estranha, também desconhecida. Bem, bem menos paciente.
_ Você não tem nenhum motivo pra parar de respirar. Respira. - Voltou a primeira voz, agora já no mesmo tom da segunda.

Abri os meus olhos quando senti dois pares de braços agarrando os meus, tentando me levantar. Recusei a ajuda.
Apesar de achar mais palatável a ajuda de estranhos do que de qualquer "íntimo".
Me soltaram e se afastaram um pouco. Senti com minha mão direita a minha garrafa no chão, que rolou vazia pela calçada. Tentei firmar minhas duas pernas. Tremi.
Mas firmei, sim. Comecei a caminhar, bati com as mãos na minha bunda tentando tirar qualquer eventual sujeira que tivesse ficado. Não agradeci as pessoas que tinham tentado me ajudar, agora lembro. Só fui - Um sentimento de urgência cresceu em mim quanto mais consciente eu ficava, eu tinha pouco mais de uma hora. Adeus cordão umbilical. Eu tinha um velório pra ir.



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