Crônica de Domingo: O Gramado Verde

O Gramado Verde

Ela tinha chegado um pouco tarde, e já teve que se ausentar por um tempo.
Se não me engano, pra se recompor, trocar de roupa, mas foi coisa rápida.
Acho que era a filha dos anfitriões. Então, existia um certo ar de urgência, que conseguia ao mesmo tempo ser inútil mas também aguardada, enquanto ela, agora oficialmente presente, ia

de grupo em grupo
pelo gramado,
pela piscina,
e pela estrutura de apoio, ali, da área externa, onde se concentravam mais garçons, os grupos em clima de vernissage,

ali, onde se limitava o alcance da música ambiente.
De grupo em grupo, ela ia rapidamente contando as novidades, me parece que os últimos feitos da sua vida profissional. Consegui captar que ela era jornalista.
Linda.
Jovem com a energia de quem vê cada diligência no trabalho ainda como uma nova aventura, e não a repetição conhecida de algo aparentemente excitante.

Fiquei olhando pro meu copo, pro gelo derretido nele - aquela velha cena - tentando lembrar como era se sentir assim, e me alimentar um pouco dos resquícios das sensações que consegui fazer voltar. Foi quando ela se aproximou de mim. Aparentemente, ela tinha percebido que eu estava de longe acompanhando seu perambular pela festa. Cada passo, simplesmente aconteceu.
Eu também recebi a narrativa de suas últimas aventuras, mas com um caiado bem mais resumido, como uma forma de respeito pelas minhas próprias aventuras.
Isso me fez ter a impressão de que ela sabia quem eu era. Ainda assim, ela me perguntou o que eu fazia. Respondi o de sempre, como sempre.
Um apanhado.
Ela abriu a bolsa e destacou de uma cartela, agora apenas bordas picotadas, as duas últimas fotos, de rosto dela, dessas tiradas em cabines de rua. Ela as estendeu pra mim e eu com um sorriso de canto de boca achei aquela coisa impressa descabidamente analógica, um saudosismo, de bastante peso romântico - ingênuo -, de algo que ela provavelmente nem tinha vivido dada sua juventude. O analógico. Ela sorriu de volta. Mas não com a ironia e análise do meu meio-sorriso. Foi um sorriso inteiro e, principalmente, de olho no olho.
Acabou ali, mas ela se despediu com ares de "depois a gente continua isso aqui, pode apostar", de que concluiríamos o que ela estava só começando ali, que então faria sentido, óbvio até, e eu perderia aquela cara de dúvida quanto ao que estava acontecendo. Tão jovem... Ela se afastou e foi para outro grupo, o último que restava.

Um cara extremamente bêbado, jovem e de porte de quarterback, perambulava no meio do gramado, parecia ser alguém conhecido de boa parte, um hooligan que todos já tinham adotado por algum motivo no tempo. Enquanto com uma mão segurava uma lata de cerveja, com a outra bebia outra lata de uma respirada só. Em segundos, tudo aquilo voltada pra fora, claro. Mas o tempo era  suficiente pra ele agarrar por trás, numa chave, a pessoa mais próxima e vomitar em cima dela toda aquela espuma branca.
Assim que a espuma acabava, e isso demorava um pouco, a pessoa finalmente desvencilhava as mãos e ia tentando começar a se livrar de tudo aquilo despejado em cima dela. Já ele, voltava a perambular pelo gramado, abrindo mais uma lata e procurando o próximo.

Eu via aquilo em choque, e procurava olhando pra um lado e pro outro alguém que também estivesse ao menos boquiaberto, dentre pessoas que eu já conhecia desde muito jovem, às pessoas com quem eu já tinha passado um tempo conversando, ali, naquela festa. Consegui eventualmente achar uma ou outra pessoa que compartilhava da minha perplexidade, mas a conversa terminava rápido numa sensação de que é assim que as coisas são e não há muito o que se fazer.

Meu impulso foi me afastar. Fui pro extremo oposto do gramado. Não havia mais música qualquer, não havia mais pessoa qualquer, não havia mais luz qualquer. Tomei consciência do céu limpo. Dava pra ver a festa ainda, mas preferi o céu limpo.
Continuei caminhando. Um casal, dois homens, veio em minha direção, saindo de onde eu aparentemente chegaria e passou rapidamente por mim dando risinhos de algo que diziam. O caminhar me fez sentir o peso do álcool. Eu não precisava caminhar mais, de qualquer forma, cheguei ao parapeito.
Senti alguém se aproximando.

Antes mesmo de ver quem era, ouvi o barulho de gelo dançando dentro de um copo. Debruçado no parapeito, não tive tempo de me virar. Primeiro vi uma mão transferir boa parte daqueles gelos que ouvi para um meu copo, segui o braço, fui torcendo meu pescoço, e logo o reconheci, era o Nikolaj.

Nikolaj era o outro filho dos anfitriões. Sua fama, ou melhor, suas famas, o precediam. A questão é que elas muitas vezes eram antagônicas. Difícil saber o que era real, o que era fantasioso. Mais difícil ainda seria eu já ter parado pra pensar nisso.

Ele se debruçou ao meu lado também no parapeito. Ficamos um longo período em silêncio. Um longo período. Eu não fazia ideia do que eu teria sequer pra conversar com ele.
Então ficamos lá um do lado do outro debruçados sobre o parapeito que dava vista para árvores declive abaixo, até uma pequena estrada pouco iluminada, que provavelmente era a estrada que nos trouxe até ali - era o que eu me perguntava.
Finalmente achei que deveria falar algo, afinal estava na casa dele, na festa dele de certa forma, e ia falar sobre a transferência dos gelos. Mas não deu tempo, ele começou a falar do cenário atual, eu já tinha passado a semana inteira falando disso. Quando ele acabou, eu comecei a falar sobre alguma  bobagem de trabalho, alguma "solução criativa" pra algum problema corriqueiro. Ele prestava atenção interessado, mas algo nos olhos dele...
Não sei, acho que parte dele tava pensando na lista de compras pra casa no dia seguinte. Se bem que isso não deveria ser função dele. Seja como for, o ponto é que enquanto eu ia falando coisas no automático, eu prestava cada vez mais atenção nos olhos dele. Primeiro o normal, buscando reações, depois definitivamente os olhos em si. De que país eram aqueles olhos, como tantos cílios, o que se passava naqueles olhos, será que as pessoas viam aqueles olhos, como podiam ser tão opacos e ao mesmo tempo ter tanta luz. Os Olhos do Nikolaj.

Ficamos intercalando, uma hora eu falava sem parar de algo que parecia de um mundo alheio ao dele. Ele ouvia, aparentemente. Uma hora ele falava sem parar de algo que certamente era alheio ao meu mundo, eu voltava a aproveitar pra me desligar e prestar atenção nos olhos.
Ou o álcool, ou vento gélido que subia por entre as árvores até o topo da colina, vai saber!, fez com que nossos corpos no parapeito e nossos rostos ficassem muito próximos.
Ele era absurdamente bonito, uma versão masculina da jornalista. Não chegava a ser 10 anos mais novo que eu, acho, mas algo nesse caminho - naquele limite em que já se é adulto, mas jovem. Já eu, talvez não por muito tempo, estava naquele limite de já ser adulto, mas ainda não velho.

Enquanto ele falava, lembrei da festa, virei minha cabeça para trás, entre nós dois, com certo esforço, com certa torção, pra ver o que estava acontecendo, e... Não sei explicar, senti que a festa estava diferente. Parecia mais iluminada, mais viva, me parece que eu até voltei a ouvir a música. Comecei a pensar nisso quando percebi que o Nikolaj tinha parado de falar porque viu que eu me distraí com outra coisa.
Voltei rapidamente a cabeça pra frente. Silêncio. Voltamos ao silêncio. Me veio do nada um sentimento de culpa, de ter quebrado algo.
De súbito, me virei pra ele pra dizer alguma coisa, enquanto tudo que ele precisou fazer foi mover um pouco os lábios, pra alcançar minha boca, e me dar um beijo.
Um bem preenchido e carimbado beijo.

Eu fiquei imediatamente preocupado. Definitivamente desconcertado. Ele era lindo, ou melhor, digo, eu... não esperava aquilo.
Eu olhei tudo ao redor pra verificar se alguém tinha visto algo.
Na minha bebedeira, aquele toque, o calor daquela outra boca, a aspereza daquela outra barba, a transferência do sabor daquela outra bebida, durou uma eternidade.
Na minha bebedeira, provavelmente mal devo ter movido a cabeça nesta busca por testemunhas. Meus olhar certamente estava enlouquecido, porém.

_ Por que você fez isso??

Ele tentou articular alguma frase como resposta mas não chegou em nada. A calma dele com o que tinha feito, e a surpresa dele com a minha pergunta já a respondia: porque fazia sentido.

Escrito por Bjorn Nattevagten

Comentários

Anônimo disse…
Colega, blogueira desde o início dos anos 2000, voltando justo agora???