Depois de passar por todas as metamorfoses, temo ter voltado a ser o Bjorn do post inaugural.
_ Eu sou gordo? - um cara me segurou com força pelo braço.
Me afastei o máximo que o braço teso dele permitiu e me demorei olhando.
_ Não, você é magro.
Ele me olhou fundo nos olhos mostrando que aquela questão absurda em si era secundária. Mas o olhar profundo também mostrou que ele tava fora de si.
_ Falaram que eu sou gordo.
_ Falaram errado. Você é magro.
Tentei ser o mais convincente possível pra ele largar logo meu braço. Mas trocando as técnicas básicas de persuasão pelo objetivismo. Pq se eu fosse verbalizar o quanto ele era magro... ele ia se ofender, aquilo ali ia demorar... Pq era muito. E todo mundo ali sabia disso.
Ele soltou meu braço e voltou pro grupo de amigos logo ao lado.
Voltei a olhar pro telão que passava um video-conceito. Meu braço de novo:
_ Meu amigo não é gordo - uma loira tentava me convencer.
_ Eu sei! Eu falei isso pra ele! Ele não é _nada_ gordo.
_ Então, pq |barulho| você |barulho| ele |barulho|?
_ Ahn???
_ Ai, pfff, nada. - e me lançou o mesmo olhar blasé da loira do video projetado no telão.
Ampgalaxy. A loja de roupas que tem um lounge que tem uma boite d'A Mulher do Padre. Que tem conceito.
Gostei de lá. Muito provavelmente pela falta de necessidade de me identificar com um lugar pra gostar dele. Sabe aquela preguiça de Pessoas-Conceito que eu tenho, Margot Tenenbaum? Pois é, não baixou. Pq um olhar mais atento percebia os substratos de _cada um_ ali...
...E pela inconsistência também. Era tão inconsistente que nem incomodava. E pq tava muito engraçado uma coisa: eu já tinha visto _todo mundo_ que tava lá. Só que os rostos eram um pouquinho diferentes dos que eu já tinha visto. Quem mandou facilitar o acesso aos catálogos?
Enfim. E a coisa ali gritava: o Supermercado de Sentidos ficava a um lance de escada. Uma coisa “who I wanna be tonight? Not me.”.
Acompanhei a loira voltando pro grupo dela. E nisso percebi que lá tinha um cara que acompanhava tudo.
Alguém acompanhar algo ali já é um diferencial. Então, prestei atenção nele.
Ele se certificou disso, assegurou-se de que eu estava capturado, me olhou fundo nos olhos e foi andando até as costas de _algo_ que parecia ser um namorado.
Começou a beijar o cara pelas costas mesmo, como quem cai de boca em _algo_... E eu ali assistindo. O beijo era quase meu. Já que era pra mim.
Isso é o tipo de coisa que me incomoda.
Sem parar de beijá-lo, foi virando o tal namorado de forma que ele ficasse de costas pra mim e pras pessoas que estavam comigo.
O namorado, por sua vez, tava achando a voltinha o máximo, deixando até um sorrisinho escapar no canto da boca. Os olhos fechados. De ambos.
Assim que o namorado estava devidamente posicionado, o tal cara abriu os olhos de uma vez só. Fixos nos meus. Tipo como os cadáveres fazem em Tru Calling. Só faltou dizer "help me...". Disso, passou pra um olhar que, creio, tinha a intenção de me deixar excitado.
Então, vi que tudo aquilo ali - tudo aquilo ali - não passava de uma grande brincadeira. Não que não fosse óbvio... Eu só não tinha problematizado ainda.
E eu não queria participar.
Tipo, tudo bem, eu tava bem, eu tava bem. Cada um com suas brincadeiras. Simples...
Mas foi aí que senti preguiça. E a preguiça _só_ veio pq eu tinha sido desarmado. Mérito dele, admito. Pq o tal cara com olhar de despertar-dos-mortos e pinta de Lex Luthor tinha me atraído. Eu tava começando a cair... A pensar que ele era legal, bom, inocente, virgem...
Então, a preguiça era só defesa mesmo.
Tinha muita gente ali. Aceitei o convite pra ir embora.
Subimos pr`A Mulher do Padre em si pra pagar.
O piso-loja tava bem mais calmo. E tinha luz.
Iluminadas, as pessoas-conceito ficam mais humanas. A gente tem a impressão de que dá até pra conversar com elas, uma maravilha.
Mas meus olhos desviam, não tem jeito.
Logo acharam, sentado num canto, deslocado, entediado, praticamente puto, impaciente, esperando algo, de boné, t-shirt e calça, o menino mais lindinho. Ele foi Feito.
O Lano não dá pra explicar.
De certa forma, era um absurdo ele existir.
De certa forma, causava até revolta.
Como um mundo com tanta coisa ruim acontecendo podia fazer um Lano?
Como explicar o Lano, meu deus?... Alvo, loiro, olhos claros, mediano, sardas? Não, é pouco. Ahn, também não quero dizer, tipo, não é que quando ele foi desenhado foi milimetricamente calculado e blablablá. Não é isso.
Ou, então, tá; se eu for por aí, direi então que o Lano não é cheio de retas, traços curtos que nunca se sobrepõem, ângulos precisos.
Não, o Lano tinha sido feito daquele jeito que o Niemeyer faz seus esboços. Como vemos em entrevistas e documentários. Com traços leves, livres, descompromissados. Que a gente vai acompanhando o desenhar - desacreditando e tal - mas vai acompanhando o que se forma e, de repente, percebe como desde o princípio não poderia ser de outra maneira. Olha e pensa "claro que era assim que tinha de ser! Óbvio!". Uma linha ali, outra ali e pronto. Óbvio!
É dessa perfeição inquietante por ser inegável que eu falo. E olha que eu estou falando só do que se vê.
E como, meu expliquem, como _alguém sentado num canto de loja_, do lado de uma fila de pagar boleta podia fazer o peito da gente aquecer e a perna fraquejar só de _Ser_?
_ Vamos?
_ Não, vai... espera só mais um pouquinho - e tentei sinalizar com os olhos o motivo.
O Lano nem me viu.
Ou melhor, ele nem se deu ao trabalho de me ver. Pq era meio impossível ele não me perceber ali prostrado na frente dele no meio da clareira que se formava entre as duas filas do caixa. Ele _sabia_ que estava sendo observado, mas continuou com o olhar fixo no nada perto do chão...
Claro, sei lá, e nem sei se prefiro que não, mas, bem, existe a possibilidade dele ter me olhado quando eu não prestava atenção... (ué, possibilidade é possibilidade...).
Sei que minha fascinação devia estar assustadora e eu no lugar dele teria ficado imóvel, com medo de qualquer movimento brusco meu causar qualquer reação do stalker em questão.
Pensando bem, foi bem o que ele fez...
O negócio tava meio estranho mesmo. Tanto que o embaraço tomou conta de mim e segundos depois de dizer que eu queria prolongar o momento, pedi pra irmos logo embora.
Não sei se foi a composição do quadro ou o quê, mas a imagem do Lano sentado olhando o nada não me saiu da cabeça o caminho inteiro. E mesmo enquanto eu dançava de olhos abertos no meio da pista da D-Edge, meus olhos se turvavam e eu voltava a viver aquela imagem.
Era gostoso. E por isso não vou ficar aqui deixando parecer que era involuntário. Eu me permitia tranqüilamente isso que eu vinha aprendendo a não me permitir.
O prazer de reviver o prazer daquele momento me guiava e eu não me enjoava do replay. Algo que se sustentava pela certeza [segurança] da impossibilidade do Lano. De vê-lo, de algo acontecer. Estávamos em São Paulo, afinal. O Lano não passaria daqueles poucos momentos na minha memória.
Ele não tinha a mínima chance de me decepcionar. Não deu tempo, não dava mais tempo, não existia um caminho cheio de informações que o maculariam.
Então, eu estava seguro pra viver a essência daquilo, e aumentar aquilo infinitamente sem que o império caísse. Eu tava tranqüilo.
Mas a vida é assim: ela me desarma e depois ataca.
Com meia hora de D-Edge, a dois metros surge o Lano.
E, bom, dessa vez ele me viu. : )
Então São Paulo também podia ser pequena...
Desta vez ele não estava sentado num canto, mas junto de uns amigos. Uns mais velhos, outros mais bobos. Informação nova, já. Mas ele ainda era o mesmo: tava ali deslocado, sem saber pq, tava ali na insistência... Imposta por ele mesmo, pareceu.
Deu pra vê-lo melhor na D-Edge, por horas. Ele é daquele tipo que quanto mais você olha, mais interessante vai ficando. Do tipo perigoso, então. E tinha corpo de Joey Tribbiani. Tipo aquele peito, sabe? Que deixa a camisa pendendo sem encostar na barriga e tal. Sei lá, diferente isso.
As horas foram se passando.
Vi quando ele viu que eu tava olhando pra ele e vi quando ele viu que eu percebi que ele tava olhando de volta.
Vi quando ele comentou com o amigo dele que eu tava olhando pra ele, e também vi quando o amigo dele comentou com ele que já tinha sacado há muito tempo. E tinha mesmo. Existem amigos que percebem e não contam.
Rápido, todo mundo que tava com ele já tava sabendo.
Minha roda também não ficava atrás, não. O Filipo já acompanhava os movimentos deles (mesmo pq eu não me desliguei mais disso). E fazia caras de que ia me matar se eu não fizesse algo logo.
Eu _via_, _assistia_, mas só. Vi quando ele passou olhando pra mim a caminho do banheiro e vi quando ele fez o mesmo na volta.
As três vezes. Ida e volta. Será que ele via que eu percebia?
(Ah, e teve também a vez que ele olhou pra mim, falou algo no ouvido do amigo, olhou de novo pra mim, veio andando em minha direção [,me transformou em pedra,] e passou direto em direção ao banheiro. Mas não entrou. Nem se deu ao trabalho. Voltou pros amigos...)
O comportamento dele era o típico de um tímido que quer ficar mas que nunca conseguiria chegar em alguém.
Ok, tá, tudo certo. Mas como assim??? Ele afim de mim? Complicado acreditar. Ele inseguro??? Que mundo é esse no qual vivemos? Ele inseguro? Tem gente que não tem noção do próprio poder mesmo...
Eu continuava dançando, na minha. Morrendo de medo de viver. Tentado não dar nenhuma margem pra que ele se sentisse seguro e fizesse algo acontecer. Pq, por dentro, eu já tinha virado pedra há muito tempo, né. E se aquele cara chegasse perto de mim, nossa, eu surtava, babava, espumava, entraria em convulsão ali mesmo. Ia dar trabalho. Então, eu da minha parte, fazia de tudo pra desencorajá-lo.
Tava bem claro já que ambos estávamos afim um do outro. Por mais que isso não fizesse muito sentido. Tava bem claro. Digo, claro num olhar frio de dia-seguinte.
Mas, graças a deus, no limiar daquele estado no qual o SGMeD "se sente na obrigação de ir lá e conversar com o cara".
Estávamos seguros, então. Nada iria acontecer. Entre nós, nada.
Ele era perfeito demais... Uma pessoa daquelas não se beija, sabe? Sacrilégio, até. Uma ofensa.
Eu _via_.
Vi quando ele foi deixado sozinho na pista. Por isso continuei na minha dançando, constrangido.
Vi que os amigos dele esperavam de longe.
Vi que ele já tava perdendo a paciência também... Mas o que eu podia fazer?
Vi como seria o fim da noite. Nada bom, sim, mas _seguro_.
E vi como eu ia ficar me cobrando no dia seguinte, como outras vezes.
Aí vi que ele foi sozinho pro bar.
E fui atrás.
Rapidinho ele viu que eu tava lá também disputando um espaço no balcão, e eu senti que aquela minha atitude naquele momento ia fazer tudo mudar e que a noite agora ia ser outra! Ao contrário de mim, o Lano foi atendido rápido. Fim? Ele não tinha mais o que fazer por ali.
Ele quis prolongar. Na pista era mais complicado... Mas como?! Bom, ele ficou lá no lounge meio perdido entre as pessoas. Perdido como quem se esqueceu e tenta lembrar pra onde era mesmo que tava indo. Ele ainda ficou tempo suficiente pra lembrar qual era o nome dele, onde ele estava, as capitais do sudeste, essas coisas. Eu peguei minha bebida e meio que fiz o mesmo, tentei prolongar ao invés de voltar pra incomunicabilidade da pista. O tipo de situação que eu já assisti de camarote várias vezes na noite e que eu achava tão engraçado (e bonitinho).
Claro, não demorou muito e a coisa ficou meio, errr, "estranha".
Constrangimento. Crescente. Insuportável. “Faz alguma coisa, Lano, anda...”. Eu já tinha ido até o bar! Baita atitude da minha parte[...]! Algo que demandou todo um trabalho interior. Uma superação.
Juntei mais força e me recostei no balcão do bar.
Olha, eu estava prontinho pra agüentar firme e sano caso ele viesse conversar comigo. Tava, sim. Era só ele vir conversar. Era só ele vir conversar e-- Quando vi, ele já tinha passado por mim, olhado com uma cara, bem, não muito contente, e seguido pra pista.
Depois, de repente [depois de horas,], o tempo parece q se encurtou, sei lá. Virou fim-da-noite.
O Lano começou a se despedir dos amigos, meio formal. O último, o cúmplice, ele abraçou. Deviam ser muito amigos pq ele se agarrou no cara e ficou abraçado de olhos fechados. Demorado e profundo. Será que, sei lá, o Lano era gaúcho e a D-Edge era a despedida? Fiquei meio perplexo com aquilo.
Parei de dançar e me vi parado observando aquilo acontecendo a metros de mim. Prostrado como no Ampgalaxy, quando o vi pela primeira vez. Eu meio que tava me despedindo dele também já. Vendo-o pela última vez. São Paulo, né, meio longe... E se ele fosse gaúcho, então... Nunca mais, definitivamente.
Dessa vez minha prostração não ficou anônima, não. Fui pego.
Era como se o Lano soubesse que eu tava ali parado feito bobo. Ainda abraçado, ele abriu os olhos de uma vez, fixando nos meus. Gelei.
Ele se demorou aprofundando o olhar nos meus olhos. E eu tava tão desarmado, tinha sido pego tão com as calças nas mãos que não consegui desviar.
Esse foi um olhar que não dava pra desviar. Era um olhar que eu merecia suportar todo o peso. Um castigo que eu merecia. Me disse merecer, fui quase um católico. Aquele olhar do Lano... parecia que ele dizia "que pena...", até repuxou um dos cantos da boca. Doeu. Eu, boquiaberto e consumido, ainda tentei dizer "não é culpa minha, eu queria!". Mas minha boca mal mexeu.
Ele soltou o amigo dos braços e voltou o olhar pra ele. Tão silenciosamente que a pista meio que se calou.
Mais uma vez ficou perdido na ação, como ele tinha ficado quando nos vimos no bar. Meio sem saber pra onde dar o próximo passo. Demorou-se.
Não sei se o Filipo Melo captou esse momento de silêncio, mas logo depois dele, ele perdeu a paciência. Bom, pelo menos a eminência do “momento-última-chance” ele pegou:
_ Ah, não, Bjorn. Eu vou lá.
Desespero. Não, não podia. O Lano. Não, não. Como passar pra Filipo, rápido, antes que ele agisse, todo o desastre que aquilo seria? E, principalmente, como era proibido, sei lá, pelo universo que algo rolasse entre eu e o Lano? Eu fiquei atordoado. Só consegui soltar um "não, não faz isso".
_ Pq não?
Não tinha justificativa melhor do que a justificativa _real_.
Bem, real dentro da vida nada realista, tenho consciência. Mas real o suficiente:
_ Pq isso não pode. Não posso ficar com ele. Ele não é pra eu beijar. Não posso.
_ Pq não?
_ Ia maculá-lo.
Filipo Melo, a cara que você fez depois de ouvir essa foi impagável...
Ainda prosseguimos:
_ Bjorn, você tem que fazer alguma coisa. Ah, não, eu vou lá.
_ Não... Não quero... Não quero ficar com ele... Se eu quisesse, ia lá falar com ele. Mas é que eu não quero. Se você for falar com ele, eu vou virar pedra... Vai ser horrível... Deixa assim como foi. Não precisa mais que isso... O que eu vivi já tá bom...
Não tivemos muito tempo pra discussão. O Lano foi embora.
Escrito por Bjorn Nattevagten
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